"The Levant is an area, a dialogue and a quest."
Philip Mansel, Levant, Splendour and Catastrophe on the Mediterranean
Reparei que ainda não tinha falado sobre o Levante, afinal parte do sub-título deste blog. Este acaba por ser um post mais pessoal, pois o Levante cruza-se comigo, com a minha vida e com o meu passado de uma forma profunda e devo dizer também imprevisível.
O Levante para mim é um local de encontro, físico e espiritual. Tem a sua origem na palavra francesa despertar - levant - e ficou associado, no Ocidente, às terras onde o sol nascia, englobando aquilo que é hoje a Grécia, Turquia, Síria, Líbano e Egipto. Um nome ocidental para uma região oriental. Nada mais apropriado. O nexus de um encontro civilizacional, entre o mundo Greco-Romano e as civilizações do Oriente, sobretudo a Persa e a Otomana, e de um encontro religioso entre Cristianismo, Judaísmo e Islão. Saindo das suas raízes regionais,engloba, na minha história, mesmo todo o Mediterrâneo olhando para este mar como caldo de fusão de identidades entre as suas margens Norte e Sul. E é precisamente este que é para mim o ponto de partida para aquilo que é o espírito do Levante.
A primeira vez que tomei contato com esta realidade foi quando aos 15 anos li Leão, o Africano de Amin Maalouf. O romance sobre a vida de Joannes Leo Africanus, ou al-Hasan ibn Muhammad al-Wazzan al-Fasi em Árabe, foi uma porta que se abriu para mim sobre o mundo do Mediterrâneo dos século XV e XVI. Nascido em Granada em 1494, é obrigado a fugir para Marrocos fugindo da vaga de repressão na Península no seguimento da reconquista e o fim do Reino de Al-Andaluz, que culminaria um século e meio mais tarde com a eliminação da Península das suas populações judia e muçulmana. Como iria acontecer séculos mais tarde em Smirna (hoje Izmir) ou Alexandria, o fechar das luzes sobre estas regiões de miscigenação entre Oriente e Ocidente, Levantinas em espírito, acarrateria perdas irreparáveis para ambas as partes. Nunca mais o Islão teve pensadores ao nível de um Averroes (a quem devemos não só conhecer Aristóteles como, ironicamente, se pensarmos na imagem de hoje do Islão, a libertação da filosofia e ciência dos constrangimentos da religião) ou Ibn Khaldun e a Península perdeu para sempre um dos seus principais fatores de dinamismo económico. A vida de Al-Hasan é depois um autêntico fresco sobre o Mediterrâneo da época. Contemporâneo da queda dos Mamelucos no Egipto (essa casta de escravos guerreiros a quem o Islão deve a sua existência por via da sua resistência vitoriosa contra as invasões Mongois) a favor do Império Otomano, viaja por toda a região sendo mais tarde capturado, batizado e adotado pelo Papa Leão X.
Averroes: odiado pelos fanáticos islâmicos, esquecido no Ocidente
Este livro, e a história do seu personagem, marcaram-me profundamente. Quando vinte anos mais tarde, descobri em Cabo Verde as origens da minha família, voltei a reler o livro e senti-me um pouco parte desse período onde o Mediterrâneo não era mar mas apenas um rio raso que se atravessava facilmente de uma costa para a outra. Como breve pausa desta história sobre o Levante, falo pois sumariamente da minha. Ao chegar a Cabo Verde em 1997 para trabalhar no Governo do país, esbarro no aeroporto do Sal com a placa de inauguração do terminal e com o nome completo do então Primeiro-Ministro, Carlos Alberto Wahnon de Carvalho Veiga que eu apenas conhecia dos jornais como Carlos Veiga. O seu apelido Wahnon levou-me a descobrir toda uma dimensão da história da minha família que desconhecia até então. Com as suas origens perdidas no tempo, de antes da conquista de Marrocos pelos Árabes, enquanto tribo judia berbere de Tetuan, a família Wahnon, como os Cohen, Levi, Benoliel e outros, sai de Marrocos no século XVIII, para Gibraltar, Cabo Verde, Portugal e o resto do mundo. Anos mais tarde, casado com uma mulher de origem marroquina e de confissão Muçulmana, não deixo de sentir, pois, um fechar de círculo sobre a minha leitura de adolescente de Leão, o Africano.
O Levante tem um espírito, mas também uma raíz geográfica. Ficou para sempre ligado a cidades como Smirna, Salónica, Alexandria, Jaffa e Beirute. Enquanto expoentes máximos do cosmopolitismo, estas cidades precisaram sempre de um Império para as proteger. Na verdade ao longo da história, os Impérios foram mais vezes uma força de progresso e de contenção das pulsões de barbárie do ser humano do que de simplesmente tirania, como estamos hoje a descobrir amargamente com o ocaso do Império Americano. O fim dos Impérios ditado pela Primeira Guerra Mundial, e o explodir do nacionalismo em toda a sua fúria faminta, condenou estas cidades à extinção do seu caráter multicultural e por esta via as amputou da sua importância cultivada ao longo de séculos. Hoje Izmir é uma cidade turca, Salónica Grega, Jaffa israelita e Alexandria Egípcia. A diversidade destas cidades é hoje apenas vislumbrada nos seus cemitérios e nas suas campas. Só Beirute ainda resiste no fio da navalha. Jantar em Beirute na casa de uma família libanesa e passar a refeição a assistir à discussão saltitar do inglês para o francês e árabe e vice versa, é um registro (e deleite) de tempos passados tal como a competição na hora das preces entre o repicar dos sinos das igrejas e os cânticos dos muezzin. Hoje estas múltiplas identidades que eram características do Levante, são ao mesmo tempo crescentes em toda uma camada da população mundial que partilha, de Shangai a Nova Iorque, a mesma educação e base cultural, e mais vulneráveis aos fanatismos identitários que são a defesa dos muitos que se sentem fragilizados pela globalização. Na verdade, se fizermos um pequeno grande salto comparativo, hoje o espírito Levantino encontra refúgio em cidades como Nova Iorque e Londres, cidades dinâmicas, multiculturais e verdadeiros centros da elite globalizada. Para imaginar a queda (e a perda) das cidades do Levante, basta apenas imaginar como seria Nova Iorque e Londres se elas fossem apenas uma cidade norte-americana ou inglesa. Mas da mesma forma que os habitantes da corniche em Alexandria, árabes, arménios, judeus, italianos entre tantas outras origens da cidade, desconheciam o que fermentava nos subúrbios pobres da cidade, hoje, por vezes, esquecemos quanto alguns equilíbrios dos quais dependemos são igualmente frágeis. Porque cruzado com ódio à multiplicidade de identidades que derrubou o Levante, temos esse ódio ancestral ao cosmopolitismo. Da história de Sodoma e Gomorra ao romantismo alemão de Thomas Mann, sempre a cidade foi vista como centro de bastardização e corrupção de um ideário de homem puro, do campo e ligado às suas raízes ancestrais e vivendo numa sociedade idealizada virtuosa como existe no imaginário do salafismo dos fanáticos islâmicos. Judeus e arménios conheceram a perseguição nos século XIX e XX, entre outras razões, precisamente por serem protótipos perfeitos do homem da cidade, de profissão liberal e que não produz nada de real. De tão integrados que estavam na vida de muitas cidades alemãs que muitos judeus apenas realizaram a sua condição judaica a caminho dos campos de extermínio. Não é por acaso, pois, que o ataque do 11 de Setembro teve como alvo Nova Iorque e os prédios do World Trade Center, essas verdadeiras Torres de Babel dos tempos modernos. E das consequências mais perniciosas deste evento para os Estados Unidos e a sua prosperidade, foi o fechar da sua política de imigração traduzida nas inúmeras dificuldades que hoje enfrentam cidadãos de todo o mundo para estudar e trabalhar no país. Os instrumentos da globalização carregam, pois em si, quer a possibilidade de conectar de forma indissolúvel toda uma camada da população mundial, proporcionando a troca cultural e a execução de negócios à escala global, como unificam a ligação e a força dos que a ela se opõem por todo o globo. Estas tensões conhecem também uma expressão aguda na Europa, onde a necessidade de acolher imigrantes por via da sua decadência demográfica e baixo nível de dinamismo económico convive hoje com incapacidade de transmutar a identidade étnica europeia em algo mais abrangente e universal capaz de integrar com sucesso as segundas e terceiras gerações de imigrantes. A este título, ter perdido definitivamente, a meu ver (pois hoje a elite turca já não vê no caminho europeu algo de interessante e viável), a oportunidade de trazer a Turquia para o seio da Europa é dos erros políticos que pagaremos com juros mais altos no futuro.
History repeated
O diálogo como parte integrante do espírito do Levante não é acrítico nem passivo. Ele é crioulo porque fruto da mistura. Ele é, na sua essência, como diria João Paulo II, "not an exchange of ideas but an exchange of gifts". E esta vitalidade faz dele, não só imensamente enriquecedor e uma verdadeira mola para o progresso, como, também infinitamente frágil e vulnerável tão visível nessa história esplendorosa e trágica das cidades do Levante.
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